Xenotransplante: o futuro do transplante cardíaco pode estar no porco?
Falar sobre transplante é falar sobre limites — os da medicina, os da biologia e os da própria vida. Em um cenário onde a insuficiência cardíaca avançada cresce e a disponibilidade de doadores humanos não acompanha a demanda, surgem perguntas inevitáveis: e se fosse possível transplantar o coração de outra espécie? E se o coração de um porco pudesse salvar vidas humanas?
Esse é o princípio do xenotransplante, o transplante de órgãos de uma espécie para outra, no caso, do porco para o ser humano. Embora pareça ficção científica, esse campo já é uma realidade em desenvolvimento acelerado e representa uma das fronteiras mais promissoras (e desafiadoras) da medicina cardiovascular.
A escassez de órgãos e a urgência por soluções
Segundo dados da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), o Brasil realizou 392 transplantes cardíacos em 2023. Apesar de ser o segundo maior sistema público de transplantes do mundo, o número ainda é insuficiente diante das milhares de pessoas que poderiam se beneficiar. Estima-se que de 40% a 50% dos pacientes elegíveis sequer chegam à fila — seja por instabilidade clínica, critérios restritivos ou simplesmente pela falta de órgão compatível.
Globalmente, a situação é semelhante. Nos Estados Unidos, mais de 3.000 pessoas estão atualmente na fila por um coração. Em média, 20 pacientes morrem por dia esperando um órgão, segundo o United Network for Organ Sharing (UNOS). Essa discrepância entre necessidade e disponibilidade é o que alimenta o interesse pelo xenotransplante.
Por que o porco?
A escolha do porco como doador não é aleatória. Essa espécie apresenta diversas vantagens importantes: os órgãos têm tamanho compatível com os dos seres humanos, o ciclo de reprodução é curto, os animais são relativamente fáceis de manipular geneticamente e o custo de criação é mais acessível se comparado, por exemplo, a primatas não humanos.
Além disso, avanços na engenharia genética têm permitido contornar um dos principais obstáculos do xenotransplante: a rejeição hiperaguda. Essa resposta imunológica ocorre minutos após o transplante e pode destruir rapidamente o órgão. Para enfrentá-la, pesquisadores vêm desenvolvendo porcos geneticamente modificados, retirando genes responsáveis por antígenos incompatíveis com o organismo humano e inserindo genes humanos que ajudam a modular a resposta imune.
O que já foi feito?
Em 2022, um marco histórico trouxe o tema para o centro das discussões médicas: David Bennett, um paciente em estágio terminal, recebeu um coração de porco geneticamente modificado nos Estados Unidos. O órgão funcionou por 60 dias antes de falhar, provavelmente devido à presença de um vírus suínico (PCMV). Apesar do desfecho, o caso foi considerado um avanço significativo. Em 2024, um segundo paciente recebeu um novo coração de porco e sobreviveu por seis semanas, com um protocolo mais rígido de controle infeccioso.
Empresas de biotecnologia como a eGenesis e a Revivicor estão à frente dessas pesquisas. Recentemente, divulgaram dados promissores de estudos pré-clínicos com primatas não humanos, nos quais corações suínos altamente modificados conseguiram funcionar por mais de seis meses com estabilidade e boa adaptação.
Onde estamos e para onde vamos?
Apesar dos avanços, o xenotransplante ainda enfrenta importantes barreiras. Entre os desafios estão a rejeição crônica, o risco de transmissão de infecções zoonóticas, questões éticas relacionadas à criação de animais geneticamente modificados para fins médicos, além do alto custo e das exigências regulatórias.
Por outro lado, os avanços em edição genética, especialmente com tecnologias como o CRISPR-Cas9, a criação de imunossupressores mais específicos e protocolos de biossegurança mais rígidos têm tornado o cenário mais otimista. A FDA, agência reguladora dos Estados Unidos, já permite autorizações especiais para o uso emergencial da técnica em pacientes sem alternativas terapêuticas. A expectativa de muitos especialistas é que, dentro de cinco a dez anos, o xenotransplante possa ser oferecido de forma controlada para casos selecionados.
E como isso nos impacta hoje?
Mais do que uma solução futurista, o xenotransplante nos convida a refletir sobre como podemos aprimorar o sistema atual de transplantes. Isso passa por investir mais em campanhas de doação de órgãos, ampliar o acesso a dispositivos de assistência ventricular (DAVs) e reforçar o acompanhamento precoce e integral dos pacientes com insuficiência cardíaca.
A revolução dos transplantes não virá apenas do laboratório. Ela também depende da forma como conectamos ciência, ética e compromisso com a vida.
O coração de porco ainda não é a resposta definitiva — mas pode ser uma ponte. Entre a escassez e a abundância. Entre o limite atual e as possibilidades do futuro. Cabe a nós, profissionais da saúde, acompanhar de perto esses avanços, sempre com responsabilidade, conhecimento e, acima de tudo, respeito pela vida.








